Se eu tivesse o dom ou a capacidade de relembrar como foi tudo aquilo de que não me lembro!? Gostava de saber como é que é estar lá dentro e sair de lá roxo «se é que assim foi que de lá saí.» E já que te peço, peço também que sejam nítidos e claros os sonhos que tenho, peço para que sejam como este sonho que tenho agora, neste exato momento em que me escrevo. Há coisas que prefiro saber sentindo-as reveladas, que não mas digas, que apenas me faças sonhar com elas. Há pouco tempo parecia ter sonhado com ângulos retos, com o padrão dos anos impressos nas tábuas de madeira do meu soalho, com os pregos que preguei enquanto pensava em tudo menos em pregá-los. Mas não foram pregos, foram usos que lhes dei, diferentes usos e parafusos que tornei nesta espiral de existir. Não é nítido se de repente me senti cansado ou se apenas me sentei a observar a diversidade das coisas acontecendo à minha volta. Não sei quanto tempo são buracos, nem como os fiz. Fiz furos para encontrar tesouros em mim - disso tenho a certeza. Fiz furos onde deixei buracos sem perceber como é que isso pode ser, sendo-o, de uma forma ou de outra, pouco percetível à vista, vendo-o só com a imaginação e com a expressão ofegante do bater do coração. Talvez tudo seja indefinidamente, como pregar pregos e depois arranca-los ou centrifugar parafusos, enquanto todo à volta se espraia para as redondezas. Em todo o caso, são incertezas gramaticais, descrições tais da realidade sonhada. Nos dois casos ficam espaços, buracos, tanto no lugar dos pregos como no lugar dos parafusos, depois de devolvida a criação ao criador, ou depois de devolvida a geração há manjedoura. Tenho em mim que essas forças são de indistinta natureza. Tenho em mim que tudo são arredores e redondezas, vizinhanças… mais do que outra coisa qualquer. Tenho em mim que ver panoramicamente é uma sobreposição de vizinhanças e de que eu, o ser - não aquele que é substância, mas aquele que é substância motriz e propulsora, força, energia, ponte entre este mundo e o outro - é uma perspetiva de várias esferas cobertas de panos de cristal. Tenho em mim o, “eu o ser”, um ponto resistente e pequenino, indestrutível, ao centro de todas essas esferas finas, cristalinas e quebradiças. Mais que tudo, tenho em mim recordações de ter sido um só ser, - ser, ente - sem perspetivas nem esferas... ainda. Recordações de ter sido a estrada noturna, e os passos de um só passo ruidosos, daquele que se dá na brita para estremecer a noite e o luar e “o” recordar querer ser este, único, esta persona que sou agora, sendo agora uma sombra de outrora. Ainda que hoje fale através da voz que me é una, não deixo de ser o ponto de encontro, o mínimo centro da esfera, de todas as outras vozes que falam pelo expoente desta. E sou esta agora aquela que sabe sentir porque sente como sentiu a de outrora, que tanto quis ser a que sou agora, como a de agora quer mais do que a de outrora… ser e existir imaginando-se novamente outra. Recordações senis de muitos nadas por não se poder dizer coisas de outros mundos, se digo... faço-o apenas porque os há, porém, sem intenção de colorir as suas existências. Tenham fé, os que acreditam... os que desses mundos distam e quanto maior for a vossa fé, mais distantes esses mundos se encontrarão de vós. São misteriosos os caminhos da fé, vão dar a muitas ciências. Umas ocultas, outras reveladas, outras avulsas de tantos nadas..., mas nunca deixam de ser estradas, nem os mistérios de muitos tipos e religiões e nem as panorâmicas deixam de se cobrir de finos-panos de cristal, entre o sonho e a realidade, entre a mentira e o que é verdade, entre fantasia e a ciência exata, entre o raciocínio e razão, entre lógica e a ilusão, entre a consciência e os passos no caminho e os sons de crepitar que vão dar ao destino que é o de andar (SER, ENTE) sozinho… Tocar de leve os horizontes e as estradas... as estradas... mais pontos de encontro e umas vezes tudo e outras vezes uma folha em branco onde caberão mais alguns nadas. De vês em quando desses nadas tiro os paralelos de granito com que brincava aos mistérios que lá inventei. Tudo como um sonho de criança de um passado distante, nos palácios da memória que a escada alta da consciência me permite alcançar, um passe-livre aos registos por tempo limitado. Tudo pouco nítido, como se uma bruma houvesse entre o que é sonho e o que é relembrado. Misteriosíssimo, mais que o bloco de granito, o seu peso e o que la havia inventado, tanto de escuro como de reluzente, tanto de ouro como de prata, pequenino e bonito, padrões de mil mundos meus sonhados, mistérios da mais fina nata da inocência. Ou uma Veneza num tronco de árvore talhado pela talha e pela malha do gume do machado e dos invernos a fio a servir de base para rachar em cavacas os toros de madeira... No verão era uma Veneza inteira no coração de Lisboa, era cheia de surpresas e de mistérios, de gôndolas e canais, de casas cercadas de água a perder de vista nas redondezas daquele toro de madeira. Inocências e forças geradoras de mistérios. Foi assim que eu conheci Veneza, num toro velho e cansado das machadadas, foi assim que eu vi os canais e os casais de namorados, romantizando o sabor da brisa num passeio de gondola pelos canais, romantizando os festivais e os carnavais, fantasiando musicais e operas monumentais - Veneza num toro velho, rachado do machado e dos anos, numa árvore morta, à volta com os outros trovadores como eu, na orla dos seus rizomas despidos e ainda firmes de um dia se terem agarrado à vida, complacente com o sonho dos meninos – um gigante benevolente como a face das esferas, como os panos de cristal. Talvez esse gigante decepado descanse junto aos outros gigantes como ele, edificando a cidade a cima dos canais e da linha do nível de água do mar. Recriando Veneza no meio de Lisboa e eu verdadeiramente eu... eu agora como me recordo de ter sido um dia e de repente ser de novo eu, hoje, algures perdido nesta recordação e do "daqui a nada" ser um fumo de novo branco e denso e espesso, que me arranca do outrora e me devolve de volta para o agora, não sei quando. (Metafisicamente)
Rui Oliveira / Poeta
Nascido no dia 22 de Julho de 1982, na cidade de Coimbra/Portugal. Atualmente reside na vila histórica de Soure. Formou-se como Técnico de Gestão de Redes e Sistemas Informáticos. Apesar da sua recente aparição nas redes sociais, apresentando como escritor e da distância que, hipoteticamente, possa existir entre um técnico de informática e um escritor, o que o levou a escrever foi o fato de, desde que aprendeu a escrever, ter se sentido impelido pela língua portuguesa. Além disso, é algo de família; seu avô expunha seu dom publicamente sob a forma de crônicas escritas para um jornal, na era colonial, em Moçambique.
Instagram @ruialexoli
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